Rubem Alves
A Branca de Neve é uma tonta, irritante na sua bobice. A figura que me comove por sua tragédia é a Madrasta. Se eu pudesse, mudava o nome da estória de Branca de Neve e os sete anões para a A Madrasta e o espelho. Branca de Neve é tonta e boba por não haver se olhado no espelho – se olhou, não percebeu o fascínio e o terror que moram nele. Se gosto mais da Madrasta é precisamente por isto, porque tenho longas conversas com o meu espelho – com os meus espelhos, pois são muitos.
A Branca de Neve é uma tonta, irritante na sua bobice. A figura que me comove por sua tragédia é a Madrasta. Se eu pudesse, mudava o nome da estória de Branca de Neve e os sete anões para a A Madrasta e o espelho. Branca de Neve é tonta e boba por não haver se olhado no espelho – se olhou, não percebeu o fascínio e o terror que moram nele. Se gosto mais da Madrasta é precisamente por isto, porque tenho longas conversas com o meu espelho – com os meus espelhos, pois são muitos.
Ah! Você acha
que isso é bobagem, que espelhos são inofensivos objetos de vidro, frios e
imóveis, que nada fazem além de refletir imagens. Pois é justo aí que está o
seu abismo: em seu poder de refletir. Jorge Luis Borges também tem um terror de
espelhos. Diz até que lhe produzem pesadelos, pois bastam dois espelhos opostos
para construir um labirinto. Faça você mesmo a experiência: brinque com os dois
espelhos, um diante do outro, e veja o seu rosto se multiplicar em imagens
infinitas.
Você nunca
experimentou o susto de, num restaurante, numa casa, descobrir-se
repentinamente refletido num espelho, e ver-se como não gostaria, de um ângulo,
de um jeito que lhe causa uma sensação de estranheza ou mesmo de vergonha? Sou
assim? Edgar Allan Poe, segundo Borges, sentia a mesma coisa. E num trabalho
que escreve sobre decoração de casas, ele diz que os espelhos devem ser
colocados de tal forma que ninguém se veja neles refletido sem querer. Lugar
certo para o espelho é no banheiro. Porque enquanto a gente vai andando na
direção dele a gente tem tempo para se preparar, ficando então com a certeza de
que somos nós que olhamos nele e não ele que nos observa.
O que me faz
lembrar o relato de Gustavo Corção sobre uma experiência sua, acho que na rua
do Ouvidor, no Rio. Olhou na vitrine de uma livraria e viu lá dentro um senhor
de cabelos brancos, rosto muito familiar, que o fitava. Cumprimentou-o
respeitosamente, tirando o chapéu com a mão direita. E o rosto familiar fez exatamente
a mesma coisa, ao mesmo tempo, simetricamente, só que com a mão esquerda...
Os espelhos,
segundo os mitos mais antigos, encontram-se ligados às origens do homem. Nas
Sagradas Escrituras se diz que Deus criou o homem e a mulher como imagens de si
mesmo, reflexos onde ele se poderia ver. E o mito de Narciso descreve a
tragédia de um homem que se apaixonou por sua própria imagem, refletida na
fonte. E como a imagem nunca podia se transformar em posse e desaparecia sem
que seus dedos tocavam a superfície da água, ele morreu de um amor impossível.
Os dois
relatos se complementam. No primeiro, é o próprio Deus que deseja ver a sua
imagem refletida...No segundo está dito que o que se busca, neste reflexo, é
uma imagem que seja bela, pela qual possamos nos apaixonar. O mais profundo
desejo do coração humano é isto: que sejamos belos.
Fernando
Pessoa chega mesmo a dizer que ele queria se construir como uma obra de arte. E
acrescenta: “Já que não posso ser obra de arte no corpo, que seja obra de arte
na alma”. Mesmo São Francisco e todos os santos, por mais espelhos de vidro que
tenham quebrado, à moda da Madrasta, fizeram isto por amor a um outro espelho,
divino, onde sua beleza escondida poderia brilhar. Por isto gosto da Madrasta.
É nela que vejo a minha verdade refletida. Porque todos estamos à busca de um
espelho que nos diga sempre: “Tu és o mais belo!”
Ah! Se o
encontrássemos seríamos eternamente felizes. Quando, ao contrário, como
aconteceu com a Madrasta, a bela imagem se metamorfoseia em imagem feia,
viramos bruxas e feiticeiros do mal. Quebramos o espelho e o veneno transborda
do corpo...
É assim que eu
penso o amor. Amamos as pessoas não pela beleza que existe nelas, mas pela
beleza nossa que nelas aparece refletida. O que é uma bela pessoa? É aquela em
que nos vemos belos. Quando, ao contrário, o espelho encantado nos mostra uma
imagem feia, vai-se o amor e o espelho ou é quebrado ou é colocado
permanentemente num quarto de escuridão permanente. Não mais o queremos ver.
Narciso, eu
penso, é o mito mais fundamental. Mais fundamental que Édipo. Narciso dá o tema
fundamental. Édipo é uma variação, um desenvolvimento. A estória da Madrasta e
do Espelho é uma combinação dos dois: primeiro, a relação de amor paradisíaco,
Madastra e espelho. O amor acontecia na voz do espelho que dizia: “És a mais
linda”. Depois, quando a relação de encantamento é quebrada pelo aparecimento
de uma outra imagem, mais bela. E a Madrasta se vê, repentinamente, excluída do
espelho. E fica malvada. Toda exclusão faz isto: desperta em nós uma imagem
cruel e feia, que toma conta do corpo...
Por isto que
somos mendigos de olhares. Olhos são espelhos. Cada encontro é um pedido: “Diz-me,
espelho meu, haverá no mundo alguém mais belo que eu?”
Por isto nos
enfeitamos, por isto escrevemos, por isto convidamos os amigos para jantares,
por isto vamos a alegres reuniões de amigos, por isto se fazem atos heróicos,
por isto se escrevem poemas, por isto se fazem gestos: todos são pedidos de
reconhecimento da nossa beleza.
Entenderam por
que gosto mesmo é da figura trágica da Madrasta? Porque ela revela o drama do
amor, a sua alegria e a sua decomposição. Somos todos a Madrasta, em busca de
uma bela imagem.
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