12 de jun. de 2009

Ulisses

Chico Buarque de Holanda

Ulisses chega de galochas, barba por fazer, embrulho fofo, paletó triste... Mas Ulisses chega de braços enormes e eufóricos:

- Penélope, ô Penélope! Abre os olhos e as janelas! Abre o peito, minha princesa, que teu rei chegou!

Do rosto cinzento, Ulisses descobre um sorriso mágico. E do chapéu marrom cansado, ei-lo Ulisses chega de galochas, barba por fazer, embrulho fofo, paletó triste... Mas Ulisses chega de braços enormes e eufóricos:

- Penélope, ô Penélope! Abre os olhos e as janelas! Abre o peito, minha princesa, que teu rei chegou!

Do rosto cinzento, Ulisses descobre um sorriso mágico. E do chapéu marrom cansado, ei-lo agora a desenterrar coelhos. E bandeirolas, bibelôs, bonecos, mil cartões postais!

- Eh, Penélope, quanta viagem , quanta luta... Mas veja só!

E mais retratos, fantasias, óculos novo, sabonete, barbante e outros encantos menorzinhos. Mas o ato chega ao fim, o chapéu sem mágica e Penélope em branca estátua, ela e seu tricô.

- Mas como, Penélope, você não escuta?

Ulisses quer abrir as janelas, as janelas não deixam. O rosto de Penélope também estava emperrado.

- Penélope, cadê seu sorriso? Suas saudades, seus braços, seus amores, cadê? Mas qual, você não larga esse tricô. Ora mulher, seu Ulisses chegou e pronto! Cadê meu jantar, cadê meu jornal, cadê?

Agora parece que Ulisses se irritou. Sentado de costas para a mulher, decide-se pelo silêncio absoluto, sinal de protesto. Só se ouve o treque-troque-treque-troque, que é a cadeira rangendo de impaciência. Depois Ulisses se levanta e passa a marchar de parede a parede, no mesmo silêncio zangado. Fora o ploque-ti-ploque, que é o passo molhado da galocha. Enfim, a tosse de Ulisses, o pigarro, o estalar da língua, o ponta pé na cadeira e o soco na mesa:

- Chega! Penélope, acorda!

Parece mesmo adormecida. Ou morta, tão pálida e imóvel. Mas os dedos milagrosos continuam trazendo a lã, que vai criando formas, que desmaiam pelo chão. A perplexidade de Ulisses:

- Penélope, você está louca! Parece que andou sonhando, flutuando por outros mundos, as lendas, as luas, não sei... Parece que espera outra pessoa, outro Ulisses, um fantasma... Seu Ulisses sou eu, olha, sou gente, sou duro, sou quente, tenho relógio e tenho emprego, óculos e guarda-chuva, nariz e paletó... Um Ulisses meio desajeitado, um pouco balofo, está certo. Mas o seu Ulisses, queira ou não!

Mas que nada, nada com nada. Uma Penélope impassível e um inútil Ulisses. Duas cortinas bem desanimadas e uma natureza morta. Quatro paredes sem cor, surdas, mudas e uma mulher feita parede.

- Talvez você espere contos fantásticos, paisagens inéditas e empolgantes. Mas não, Penélope, não ouvi o canto das sereias. Certo que, viagem a negócios... Sei lá de sereia nenhuma! Lido com rolamentos e virabrequins, você bem sabe, peças de automóveis. Quem dera fazer sorrir, vibrar, ficar toda sacudida de ouvir aventuras ricas de emoção! Mas revendo agora... Sinto muito, não me ocorre nada mais alegre. Havia uma piada, mas já esqueci. E depois, não tinha graça nenhuma essa piada. O homem que contou, contou por despeito. Coisa dele mesmo, acho, negócio de mulher, negócio mal feito... Outras pessoas que conheci nada me disseram de novo. Quem tratou comigo, tratou mesmo de negócios. Quanto ao resto, não me ocorreu perguntar, a gente não dá importância. É bem como se a vida fosse um mau negócio.

Sentado no chão, Ulisses está coçando a cabeça sem mais idéias:

- A não ser que você queira ouvir meus sonhos. Porque sonhar, a gente sempre sonha, mesmo quem viaja a negócios. Entre credor e devedor, às vezes fui mais que mero caixeiro viajante. Fui inclusive, se isso lhe impressiona, o príncipe encantado de seus sonhos. Intrépido cavaleiro. Cavaleiro a desafiar abismos inventados... Ah, monstros tão monstros inventei, que mesmo em sonho tive medo! Gigante de um olho só! Esse aí trazia consigo todas as desgraças, a miséria, o câncer e a própria bomba atômica... Imagina, Penélope! Só de fingir que você estava ali me assistindo, enchi o peito e fui à guerra. " Ulisses vai matar o monstro", que murmuravam das arquibancadas. "Ulisses vai salvar o mundo", que ainda ouvi. Encarei enfim o animal terrível. Gritei um nome feio, não ouvi. Atirei uma pedra, mas que pedrinha besta... Resolvi então usar da astúcia. Puxei do bolso traseiro uma garrafa de aguardente, dessas de estourar peito, deslocar montanhas... Foram duas, três garrafas, o monstro era duro na queda! Do mesmo gargalo bebemos quase fraternalmente... O monstro era um legítimo alcoólatra! Virou seis litros dum gole só, contou pornografias... Rimos muito, cantamos junto! E quando a festa acabou, quem estava bêbado era eu, rolando pelo chão, vomitando asneiras... E o monstro ali de pé, num ar austero de contrabaixo, olhou-me com desprezo. E pra encurtar a história, esmagou sem dó minha carcaça inútil, e saiu por aí chutando coisas. Quanto a mim, fui enterrado com honras de herói nacional. Vieram beatas e políticos, prantos e discursos, coroas de flores... Finalmente, virei busto em praça pública, mato crescendo e cachorro regando em redor de minha posteridade. Gostou?

Ulisses procura e procura, dentro dos olhos da amiga. Mas qual, nem sequer um desprezinho. É, Ulisses pode chorar todas as lágrimas, que Penélope estará impermeável. Ulisses pode pular, berrar, bater... inútil! Só lhe resta um longo bocejo sem desespero. E examinar o próprio corpo com algum desgosto. A barriga mole de guardar cerveja, os dedos curtos de contar dinheiro, as unhas sujas, as pernas bambas... E contudo é preciso não desanimar, está ali o mesmo que partiu, a mesma casa que deixou e uma Penélope que lhe foi fiel. Faltou flores, quem sabe... Ou talvez falte uma Penélope corada e atenta, correndo de porta a porta, sorrindo, saltitando, cantando hinos, dançando valsas e abrindo vinhos pela volta de Ulisses.

- Penélope, pela última vez, se você abrisse as janelas... Essa luzinha elétrica e besta, esse diabo de tricô... Penélope, você vai cansar a vista. Vai usar óculos, vai ficar velha e vesga, varizes, reumatismo, tuberculose... chi Penélope... Além do mais, esse tricô vai ficar muito grande para o meu corpo. Meus membros não são tão largos, meu peito é metade disso. Creia, Penélope, o Ulisses que você inventou não lhe serve. Ele sabe matar monstros, varar tempestades, enganar os deuses... Mas eu sei truques de bem-querer. Você tem queixas de mim, sim, já sei. Mas agora sou um novo Ulisses! Se você quiser, os sinos hão de cantar, hei de compor poemas, promover festanças, virar criança, fazer pirueta, soltar balão! Prometo não beber na rua, consertar o cano da pia, comprar a tal televisão. Vou deixar crescer o bigode e você vai ficar toda orgulhosa! E enfim vamos fazer filho, um meninão rechonchudo, a cara do pai, heim?

Mas não, Penélope não vai acordar. Ulisses esgotou o repertório, perdeu o fôlego, relaxou os músculos... Afinal, amanhã é preciso trabalhar. Outra viagem, quem sabe, novas aventuras...

Ulisses estica as pernas, acomoda os ossos, boceja mais uma vez... E adormece ali mesmo, de galochas.

Um comentário:

  1. Mônica, cara, bom dia.
    Obrigada por publicar o texto aqui, foi de uma utilidade danada. Mas me conta uma coisa: esse conto está na íntegra, tal como foi publicado em 1966?
    Abraço.
    Miriam Hermeto

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